Título: Canção de Ninar Menino GrandeAutora: Conceição Evaristo
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Sinopse: Trata-se de um mosaico afetuoso de experiências negras, um canto amoroso e dolorido. Na figura do personagem Fio Jasmim, Conceição discute com maestria as contradições e complexidades em torno da masculinidade de homens negros e os efeitos nas relações com as mulheres negras. O livro é um mergulho na poética da escrevivência e ao mesmo tempo um tributo ao amor sob uma ótica poucas vezes vista na literatura brasileira.
Leda Maria Martins parte da manifestação corporal, religiosa e musical dos congados para inscrever o termo ‘oralitura’ como um conceito específico, baseado em letra e performance, que instaura um sujeito específico no ato de narrar, o qual apresenta fissuras, rasuras da linguagem. Em oralitura, o oral e o escrito não estão em posição de hierarquia, pelo contrário, se confluem, e reconstroem imaginários. É como penso a narrativa de Conceição Evaristo em Canção de Ninar Menino Grande, quando a autora constrói um narrador (ou narradoras, já que no início do texto existem um ‘nós’ presente) que parte da contação de uma personagem inserida na trama: Tina (Juventina) relata a trajetória de Fio Jasmin e das diferentes mulheres pelas quais ele atravessou, como o seu primeiro nome bem potencializa (fio que atravessa, penetra). Fio Jasmin é um maquinista que viaja por diferentes cidades e, em cada uma delas, se relaciona com uma mulher, mesmo sendo noivo e posteriormente casado com Pérola Maria. Cada mulher, entretanto, possui uma visão de Fio e vivencia uma experiência com ele, nem todas se decepcionam pelo seu abandono, outras já possuem final trágico devido a isso, mas Fio Jasmin, sem juízo, continua a atravessar as mulheres, perfumando-as, geminando crianças nelas, e, logo após, indo embora, retornando à Pérola Maria, que finge não saber dos casos e que tem seu como maior prazer a gravidez (foram nove).
A Fio Jasmin foi negado ser o príncipe encantado na escola em detrimento de uma criança branca e isso o marca fortemente até a vida adulta, além disso, seu pai, Máximo Jasmim (percebam como os nomes indicam tanto) e seus colegas de trabalho reforçam a ideia do homem ‘conquistador’, ‘garanhão’, e que normaliza o ‘abandonar’ das mulheres e dos seus filhos. Pérola Maria é seu porto seguro, assim como Tina será também, ao conhece-la ainda aos 17 anos, enquanto estava com 33, e que estranhamente age de maneira ‘respeitosa’, ao seu ver, pela sua virgindade.
Em todo o romance (ou novela, como também consideram esta trama), a paixão e o amor estão presentes, sob diferentes nuances, a partir muito mais do olhar das mulheres que se relacionam com Fio Jasmin do que por sua própria voz discursiva. Conceição Evaristo passa brevemente pela ‘masculinidade tóxica’, mas é na confluência e dessemelhança entre as trajetórias das mulheres que ela foca sua escrita, e é brilhante como são construídas as micronarrativas que se entrelaçam por um único fio.
Algo a se destacar são os nomes presentes nas histórias de Conceição e nesta em específico: Dolores dos Santos, que já carregava antigas dores e mantinha muita desconfiança da sinceridade dos homens, Juventina Maria Perpétua, a Tina, que se modificado o artigo final, torna-se palavra que se refere a juízo, consciência ou virtude para prever perigos, entre outras personagens marcantes no enredo, as quais, acredito eu, são as verdadeiras protagonistas do livro.
Não posso deixar, no entanto, de expor meu incômodo pela redenção de Fio Jasmin e no quanto me senti incomodada pelas ‘respostas’ a sua conduta devido ao seu passado, pelo esvaziamento de suas responsabilidades ao final da trama. Mas, como penso sobre algumas narrativas literárias, o incômodo pode e deve estar presente, contanto que seja passível de reflexões diferentes e cabíveis para o debate literário.
Conceição Evaristo em Canção de Ninar Menino Grande nos conduz, pela canção na voz de Tina, a melodias reconhecíveis e não muito distantes do que vivenciamos fora da ficção, mas, de maneira única e muito bem elaborada, revela por meio de uma ficção o que há de mais bonito e potente na literatura: o contato com o humano e com as subjetividades que o rodeia.